Isabel sabe o que é dor


Assinala-se, esta sexta-feira, 21 de outubro, o dia nacional de luta contra a dor. Isabel Marques, de Alverca, tem lúpus e conta aqui a sua história.

Estava tudo bem até novembro de 2006. Uma dor de cabeça aqui, alguma fragilidade óssea acolá ou tensão alta por vezes. De resto, a vida corria de feição para Isabel Marques. Acordava de manhã, vestia-se, ajudava o filho a preparar-se, despedia-se do marido e caminhava até à creche onde trabalhava. Antes de iniciar as suas funções, tomava uma bica e punha as novidades em dia com as suas colegas. Riam-se, brincavam com as manias de alguns pais, trocavam histórias de vida e tentavam ultrapassar os obstáculos com uma perna às costas. Era uma vida pacata, embora cansativa e cheia de projetos. “Sempre gostei de me manter ativa. Odeio a monotonia e por isso inventava actividades e assumia diversas responsabilidades. Tinha muito orgulho nisso”, conta. Na altura, com 33 anos de idade, era uma jovem, mãe, esposa, educadora, com um futuro brilhante pela frente. Até ao dia em que o destino lhe trocou as voltas.
“Foi no dia 8 de dezembro. Estávamos a preparar as lembranças de natal, juntamente com as crianças. Fazíamos pequenas pinturas, esculturas e postais que depois elas iam levar aos pais. A meio da manhã comecei a sentir um cansaço extremo, com fortíssimas dores de cabeça, parecia que o meu corpo se estava a soltar de mim”. Foi o início do purgatório.
Durante alguns dias achou que eram sintomas de stress, gripe ou cansaço extremo. Uns dias depois, desmaiou e foi levada para o hospital de Santa Maria. Após diversos exames, o primeiro diagnóstico revelou um acidente vascular cerebral (AVC). Isabel ficou sem conseguir andar, tinha dificuldade em processar as ideias e as dores de cabeça eram intensas. “Foi horrível. Só me apetecia morrer”, desabafa. No entanto, aquilo que prometia ser o fundo do problema, revelou-se apenas a ponta do icebergue. Parte alguma do organismo estava livre de problemas: articulações, músculos, raciocínio, visão, locomoção, fala, entre outras. A lista era imensa e o quadro médico demasiado complexo para um simples AVC. “Fui encaminhada para a neurocirurgia porque continuava com sucessivas vasculites cerebrais e também tive consultas de reumatologia. Ao todo, fiz seis ressonâncias magnéticas e uma cintilografia cerebral. Após seis longos meses [forte tónica nestas palavras] tive a notícia que me arrasou por completo”: Isabel era portadora de lúpus sistémico disseminado muito grave. “O médico foi perentório: tinha seis meses de vida. Nada mais”. Faz uma pausa para recordar o momento e suspira. “É como se uma hecatombe tivesse caído sobre mim”.
Do dia para a noite, as urgências passaram a ser uma segunda casa. As dores eram constantes e o tratamento ineficaz. “Comecei a tomar cerca de 30 comprimidos por dia!”, exclama. "Doses de químicos tão elevadas que, em certas alturas, perdia toda a noção de quem era e de onde estava. Cheguei ao ponto de sofrer intoxicações medicamentosas. Era simplesmente angustiante. Senti-me sem chão”, exaspera.

Preconceito social
Há três tipos de lúpus: o lúpus discóide, que afeta a pele; o lúpus sistémico, que toca um maior número de órgãos; e o lúpus induzido por drogas. É auto-imune, de causa desconhecida, desregulando o sistema imunitário. Ou seja, o organismo ataca as próprias células e tecidos do corpo, resultando em inflamação. O diagnóstico é difícil: parece uma gripe, um AVC, reumatismo, cefaleia, ou outra. "Há quem espere anos para saber. Eu tive ainda alguma sorte porque rapidamente descobriram". Esse foi o único ponto positivo na história de Isabel Marques. Com "doses cavalares" de cortizona e corticoide e sessões de quimioterapia, Isabel Marques ganhou peso, perdeu cabelo, vomitava constantemente e mal dormia. O pior de tudo? “Deixei de poder ser independente. A minha sorte foi o meu marido e o meu filho que estiveram sempre presentes". A antiga educadora de infância também elogia o trabalho de toda a equipa médica que a acompanhou. Porém, o maior problema, confidencia, é o estigma social. "Como se avalia a dor? Muita gente acha que quando nos queixamos estamos apenas a ser preguiçosos ou que a inventar. Uma mancha vermelha no rosto reconhece-se e a queda de cabelo também. Já o cansaço não se vê". O lúpus é invisível. Mas ele está lá. Qual lobo sempre pronto a atacar.
Em 2008, a doença agrediu o sistema nervoso central de Isabel Marques, teve mais uma vasculite cerebral e ficou três meses internada. Na mesma altura, o pai faleceu, vítima de cancro. "Foi uma fase terrível. Acompanhei-o sempre e só temia ter que passar pelo mesmo". De repente, Isabel estava a viver o mesmo drama. Passou horas, de agulha dentro do braço, a ver o veneno entrar pelo corpo. Naqueles silêncios, falava com o pai e pedia-lhe que lhe desse força. Depois de cada sessão, levantava-se, seguia para casa (recusava sempre ficar em ambulatório) e deixava-se à mercê da sorte. A recuperação foi lenta e sempre sujeita ao sabor da doença. “Mesmo que passe temporadas bem, o lúpus está cá sempre e é uma incógnita quando volta para infernizar”. Pode ser uma pequena loucura na alimentação, um pouco de sol a mais, um ligeiro problema no trabalho… ninguém sabe. “Ao fim de dezenas de quimioterapias, internamentos, AVC, urgências, quedas, milhares de comprimidos, desisti de sofrer. Impus-me: quem manda em mim não é o lúpus, sou eu", revela.

A morte sempre à espreita
Em 2010, depois de sucessivas baixas médicas, e com um grau de incapacidade atribuído de 60 por cento, Isabel Marques regressou ao trabalho. "Era impossível manter o mesmo ritmo de stress, por isso deixei a creche, fui até à Câmara de Vila Franca de Xira, expus o meu caso à então presidente, Maria da Luz Rosinha, e fui transferida para o núcleo museológico de Alverca. Estou agora num ambiente mais calmo e o que faço requer o menor esforço possível. É pouco, mas sinto-me útil, em vez de ficar fechada em casa, a lamentar-me com a vida”. Deu assim a volta ao problema e passou a olhar para a doença numa perspetiva positiva. Com tanto sofrimento, é possível? “Sim, sou mais feliz. O que pode parecer um contra senso. Apesar de ter esta bomba dentro de mim, graças ao lúpus sou mais forte, corajosa e feliz”.
Além de manter um emprego, ainda que com algumas condicionantes, criou o grupo no facebook chamado “O lúpus não se vê mas sente-se”, que pretende ser uma plataforma de partilha de experiências e esclarecimento de dúvidas. E a 28 de maio irá moderar um debate que vai decorrer no núcleo museológico de Alverca, sobre o lúpus, com a presença de médicos e doentes que irão partilhar as suas histórias de vida. “Eu quero ajudar as pessoas a ultrapassar a doença, porque ela é fortemente debilitante e envolve também familiares e amigos. O intuito é também consciencializar a sociedade para este problema tão complexo. É necessário o apoio de todos para que os lúpicos possam ultrapassar melhor as dificuldades”. No fundo, Isabel quer ser um exemplo de vida.

Apesar de viver há mais de uma década no fio da navalha, Isabel sorri. Ainda que, neste momento, tenha o braço direito inflamado e nível de dor nove (numa escola de 0 a 10) e tenha regressado às sessões de quimioterapia. “Existem doenças bem piores e é possível contornar tudo isto”, ressalva. “Basta fazer o tratamento certinho, tomar os medicamentos e seguir os conselhos dos médicos. Deram-me seis meses de vida e, veja, ainda cá estou uma década depois!”.

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