O Hospital de Vila Franca de Xira e o Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) do Estuário do Tejo Arslvt IP organizam amanhã e sábado, 17 e 18 de fevereiro, as Jornadas da Saúde dedicadas, este ano, ao sono. Será uma oportunidade para profissionais de setor trocarem impressões mas também para alertar a população para a falta de higiene de sono que a sociedade atual padece. A revista gira falou com a doutora Paula Rosa, uma das organizadoras que deixa alguns alertas sobre este assunto.
A medicina do sono ainda é uma ciência nova.
O sono em si é uma patologia antiga, com a qual sempre tivemos problemas. Passamos um terço da vida a dormir e, como tal, isso afeta o nosso dia a dia de alguma maneira. Existem diversas patologias. De um modo geral, muitas ainda são desconhecidas. As principais são a insónia e a apneia do sono, sendo que recorremos muitas vezes a sedativos para as tratar. Todas estas questões eram muito desconhecidas pela própria classe médica há duas ou três décadas. Só que as pessoas cada vez mais ficam acordadas até tarde. Deixaram de regular a sua vida pelo sol e pela noite. A televisão, a luz elétrica ou os telemóveis permitem-nos prolongar o dia. Além disso, a vida moderna, com muita gente a trabalhar por turnos e, às vezes, em dois ou três locais diferentes, tira tempo ao nosso dia, restando poucas horas para o resto: a nossa família, as nossas refeições. Ora, e onde vamos tirar para recuperar tudo isso? Ao sono. Os jovens ficam mais tempo à frente dos computadores, há televisão 24 horas por dia e, aos poucos, vamos roubando ao ato de dormir, que achamos inútil, o tempo que queremos para as nossas atividades no dia a dia. E é assim que adquirimos maus hábitos de higiene do sono.
Há números concretos das consequências que isso tem na sociedade?
Ainda há poucos dados, fruto do desconhecimento, do recente despertar para estes pro-blemas e porque tudo isto é muito dependente dos hábitos e da cultura das sociedades. É muito difícil ter uma ideia global. Tem que ver com as gerações, por exemplo. Os jovens, hoje em dia, têm uma péssima higiene de sono. Nem só porque fazem "noitadas" mas também porque estudam muitas horas pela noite dentro. Os estudantes universitários são dos grupos mais preocupantes. Mas há outros: pessoas com problemas económicos, que trabalham demasiadas horas por dia e muitos dias por se-mana, que, mesmo que quisessem, são incapazes de ultrapassar. Aí, temos mesmo que ajudar com algumas dicas. Um padeiro, por exemplo, que trabalha toda a vida à noite, para estar com a família tem que, forçosamente, dormir pouco. Outro dos grupos são os pilotos de companhias aéreas que, além de turnos, vivem com diferentes fusos horários. É muito complicado resolver estas questões.
Isso tem consequências, certo?
Sem dúvida. Altera a capacidade de raciocínio, a concentração, a decisão, perturba os mecanisos de adapatação internos, como o sistema imunitário. É quase como quando se bebe muito álcool. Mesmo sem haver uma doença há, seguramente, efeitos que ainda são difíceis de contabilizar. Sabemos que muitos acidentes ocorrem por falta de sono, às vezes associada ao consumo de estupefacientes. Um efeito bola de neve com resultados desastrosos porque os comprimidos, em certos casos, desregulam e complicam o problema que deveria ser resolvido de outra maneira. Eu diria que 60 por cento das pessoas dormem mal. Nem todas têm alguma patologia, apenas má higiene do sono: dormem pouco, ou demasiado, ou em pequenos períodos e tudo isso descontrola o metabolismo. A apneia do sono deverá afetar cerca de quatro por cento da população. Um número que, em perspetiva, é alto. Aqui entram outros fatores que podem agravar a doença, como a obesidade ou o consumo de sedativos.
Tendo em conta os maus hábitos de vida atuais, a tendência é para o cenário piorar?
O futuro é preocupante. Quando somos obrigados, num curto período de tempo, a alterar os nossos ritmos, o organismo tem capacidade de se ajustar e, depois, voltar ao normal. O problema é quando as perturbações são persistentes e que levam, muitas vezes, a fenómenos de ansiedade e o indivíduo entra num processo de insónia crónica o que torna o problema complicado de eliminar. O recurso de medicamentos até parece que se vulgarizou. Infelizmente. Devem ser utilizados apenas quando há uma patologia específica e perante uma estratégia objetiva em que no final deixam de ser necessários. Estes produtos alteram o ritmo do sono e muita gente acaba dependente de comprimidos para acordar, para deitar, para adormecer, para ter energia... é um ciclo complicado de romper. É necessário tratar o verdadeiro problema que é a má higiene do sono e hábitos de vida errados.
Mas como se diz a um obeso que a verdadeira solução é mudar o comportamento e comer melhor?
São casos difíceis de tratar. A obesidade agrava a apneia de sono e que, por sua vez, provoca sonolência e cansaço. Como se diz a esta pessoa que deve praticar exercício físico se acorda exaus-to? Nestes casos, por vezes, tem que entrar a medicação mas não pode ser a norma.
Com os estímulos da sociedade, parece que está a lutar contra a maré.
As pessoas arranjam sempre boas desculpas para fazer aquilo que as deixa mais confortáveis. Há quem alegue que lhe é impossível fazer dieta porque come todos os dias em restaurantes. Ora, todos os espaços têm sopa, saladas, grelhados, peixe. Cabe a cada um fazer as suas escolhas. O primeiro passo que alguém com problemas de sono deve fazer é alterar a forma como vê os seus hábitos de vida.
Quais são os principais sinais de alerta?
Há vários perfis de "dormidores". De um modo geral, as pessoas devem conseguir dormir as mesmas horas, no mesmo período de tempo. Cada um tem o seu ritmo diferente: há quem durma só seis horas, outros precisam de nove horas. O importante é que, depois de descansar, seja capaz de funcionar normalmente. Se acorda muitas vezes durante o sono com pesadelos, se fala durante a noite, se está cansado quando acorda, se adormece muito facilmente nos transportes ou no trabalho, então é porque algo está mal e deve procurar um especialista.
Estão os médicos preparados?
É verdade que ainda falta uma disciplina de medicina do sono nas faculdades mas há cada vez mais conhecimento. O problema, na maioria das vezes, é que os profissionais não recebem as queixas. Os utentes chegam com falta de ar, cansaço, dores e nunca associam isso ao sono. Cabe aos clínicos fazer a pergunta de forma ativa. Aqui ainda há algum trabalho para fazer. É importante frisar que o sono é uma área que abarca diversos campos, como a pneumologia [área de trabalho da doutora Paula Rosa], neurologia, psicologia, entre tantas outras. É importante apenas que o primeiro passo seja dado. Mesmo que haja, às vezes, desvios no percurso, o importante é que o paciente chegue lá. Por isso, o melhor conselho é: se houver algo errado, devem fazer essa refe-rência aos seus médicos.
Deve ser difícil vencer esse desconhecimento na população.
Há cada vez mais informação e visibilidade para os problemas do sono. Antes, achava-se normal os mais gordinhos ressonarem, hoje já se procura resolver o problema. É claro que, às vezes, para muitos doentes é difícil abordar questões que entram na intimidade de cada um. É preciso, pois, abordar abertamente estas situações.
Esse é um dos objetivos das conferências?
Sim. E encontrar soluções, debater temas que são comuns à classe médica, trocar impressões sobre as nossas experiências profissionais. Não só evidenciar os sinais que devem alertar o médico mas, também, fornecer as armas para os poder ajudar. Seguramente os médicos de família podem ajudar a resolver muitos problemas que lhes chegam às mãos.
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