A feira maravilha


Termina hoje mais uma edição da feira de Vila Franca e respetivo salão de artesanato. Durante dez dias, a cidade acolheu feirantes, artesãos, visitantes, adultos, crianças, turistas, artistas, toureiros, cavalos e toiros, numa animação que perpassou gerações e as fronteiras concelhias. É o evento do ano. Agora é tempo de começar a arrumar as tendas, desmontar os carrocéis, limpar o chão e olhar para os próximos meses. Entramos na fase final de 2016. Daqui a umas semanas, as montras começam a pintar-se com as cores do natal, na televisão seremos bombardeados com anúncios a brinquedos e as ruas estarão inundadas com o cheiro a castanhas assadas. A vida é feita de ciclos.
Emília Maravilha vive destas rotinas há 61 anos. Feirante de Lamego, nasceu e cresceu no meio de tendas, roulotes, bancas de mercado, viagens a percorrer o país de lés a lés. A itinerância faz parte do seu código genético. Juntamente com o marido, o senhor Lucídio Silva, também de 61 anos de idade, vendem artigos de cerâmica decorativos e utilitários. Estão logo no início do parque urbano, do lado esquerdo. Por trás das peças que carregam "às costas" está uma pequena cortina que esconde uma cama, um fogão, alguns alguidares e um estendal com roupa pendurada. "Acabei agora mesmo de lavar umas roupas e estão a secar", confidencia ela. É ali que dormem, protegidos apenas pela lona e alguns cobertores. "Quando está mais frio, boto mais umas mantas", diz, rindo-se.
O sotaque de Viseu e o seu ar leve e humilde transmitem simpatia e bondade. É impossível não cair de amores por este casal simples e trabalhador. "Nós só não vamos para o Alentejo e Algarve. De resto, já andámos um pouco por todo o lado", diz. Atualmente, ficam-se mais pelas redondezas da sua casa, para poderem manter hábitos e uma ligação à terra. "Temos horta, animais e este ano conseguimos produzir mais de 1400 quilos de batatas", gaba-se o marido. Têm dois filhos. "O meu rapaz foi para a Suíça. Experimentou esta vida, mas preferiu emigrar. É a minha filha que me segue os passos", refere, apontando para umas tendas mais abaixo. Sílvia Maravilha vende o mesmo tipo de produtos com a diferença de que não vê distâncias. "A minha mãe faz duas ou três feiras por ano. De resto, está mais em mercados perto de casa. Eu já ando mais em feiras e por isso estou mais fora", explica. Com duas filhas, reconhece que esta inconstância começa a pesar. "Se existisse algo estável que me garantisse o mesmo rendimento, é claro que preferia", desabafa. "Toda a gente tem espinhos", expira Emília. "Os donos dos divertimentos, por exemplo, não têm morada. Vivem em roulotes que, em alguns casos, custam tanto como uma casa. É uma opção de vida", resume Sílvia.
É o caso de Cristina Reis, de 39 anos. Dentro do seu pequeno guiché, vende fichas aos pais que trazem os filhos para uns minutos de diversão. Carros, comboios, animais, objetos em tamanho reduzido, inanimados mas coloridos. A música brasileira confunde-se com os outros sons que atravessam o espaço. De ar cansado, a algarvia assume que esta é uma vida cansativa mas a que já está habituada. "Tenho uma casa mas nunca lá estou. Só durante o período de inverno, entre janeiro e fevereiro, é que passo lá umas semanas. O meu filho frequenta uma escola à distância, uma plaforma criada mesmo para feirantes. Têm aulas pelo computador e este ano começaram a ter sessões em videoconferência. A minha outra filha entrou na faculdade. É provável que siga outra carreira", alegra-se.
Dentro do pavilhão multiusos, Lourdes Ferreira, molda o barro, recorta pormenores com pontas de aço, e das suas mãos nascem obras de arte que deixam boquiabertos os passantes. "São lindas", ouve-se algures. "Tão bonitas", segreda alguém. Uma vida cheia de problemas de saúde, de hemodiálise, mas ultrapassados "graças à ajuda do senhor doutor Sousa Martins. Acredito muito no poder dele. E, sim, já fui à sua campa, em Alhandra, colocar umas flores", confirma. Uns stands mais abaixo está Sabahat Vorontsova, nome hebraico para uma mulher criada no Minho e que faz trabalhos em papel. "O objetivo é reciclar, reutilizar, reinventar os símbolos da portugalidade, deslocando o imaginário para novos espaços da nossa memória colectiva". Há qualquer coisa de Tim Burton nas peças que expõe e algo de muito pessoal. Num presépio em cima de uma das mesas, sorri e aponta: "estes são José, Maria e o menino, aqui em cima o local das almas, e esta senhora aqui a espreitar é a vizinha que está sempre à janela à coca do que passa". E esta personagem aqui? "Esta é quem você quiser. Deixo à sua imaginação", diz, piscando o olho. O presépio custa 580 euros, está reservado, e para casa o cliente leva mais do que uma obra de arte. Leva uma história de vida.
Seria impossível resumir o conteúdo de todas as pessoas que marcam esta Feira de Outubro. Dina Vacas, artesã de Vila Franca de Xira, recupera livros. Está aposentada e ama o que faz, apesar de "não ganhar para o esforço que dedico a cada projeto". Não muito longe, Joana Bravo, que faz trabalhos com cabaças, está estupefacta com a receção que teve. "Foi a primeira vez que vim e adorei". Ou então, há as mãos de Fernando Avelar, senhor que com um alicate de pontas que esmaga conchas que utiliza para embelezar molduras, caixas e objetos do dia a dia.
É um mundo onírico, com pessoas que vêm de todo o país mostrar o seu valor, espalhar o seu talento, deixando as suas marcas em cada um de nós. Estão todos de passagem. Eles e os visitantes. Cruzamo-nos por momentos e trocamos algumas memórias e experiências de vida. É tão boa esta reciprocidade, muito mais rica do que aquela que se encontra em centros comerciais, desenhados por empresários com ordenados milionários que vivem do outro lado do mundo. Aqui há histórias de vida, gente que defende a sua arte, acredita no seu melhor. Quer sejam queijos, doces conventuais, bonecos, pizzas ou carrinhos de choque, estes certames ainda continuam a ser eventos únicos e incomparáveis. Como adultos, recordamos a nossa infância e ficamos a conhecer melhor este Portugal tão rico e variado. Como crianças, aprendemos mais sobre a nossa história comum. Se ainda não foi à Feira de Outubro, vá, porque ainda há festa até às 24h00. Se já foi, repita a experiência. A senhora Emília Maravilha recebe-o de braços abertos. "Eu adoro o que faço. Conversar com o povo, conhecer pessoas, ver gente a passar. Há anos melhores e piores, mas o que interessa é nunca gastar mais do que se ganha". São ensinamentos destes que fazem mais falta às nossas vidas. É por causa dela e de outras como ela que esta é a feira maravilha. E olhe que a feira regressa só daqui a um ano.


















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