Maria da Conceição nasceu em Vila Franca de Xira há 39 anos. Saiu do país aos 18 e chegou a ser assistente de bordo na companhia aérea Emirates. Deixou uma vida cheia de regalias para ajudar famílias carenciadas no Bangladesh. É provavelmente uma das maiores filantropas portuguesas e precisa de toda a nossa ajuda, "nem que seja um euro". O António Dias entrevistou-a quando esteve em Lisboa recentemente. E a Ana Paula Vieira esteve lá a fotografar.
Já é uma personalidade famosa por cá. Ainda assim, há quem desconheça o seu trabalho.
No Dubai sou muito reconhecida. Foi a estratégia que usei para poder encontrar verbas para a minha fundação.
Como tudo começou?
Eu tinha uma vida normal como assistente de bordo. Num dia de abril de 2005 estava de escala no Bangladesh e tinha algum tempo livre e perguntei no hotel o que havia para fazer na cidade. Deram-me poucas ideias mas sugeriram visitar o orfanato da Madre Teresa de Calcutá, algo que os estrangeiros costumavam fazer. Aceitei a ideia, só que, quando lá cheguei, umas das irmãs estava de saída para o hospital de Dhaka para levar uma menina e convidou-me a acompanhá-la, sem imaginar o que iria encontrar. Foi um choque. As condições eram infrahumanas: doentes espalhados pelo chão, feridas expostas, as necessidades fisiológicas feitas em qualquer lado. O ar era irrespirável. Pedi desculpa e saí. Naquela noite, nem consegui jantar. Estava agoniada. No dia seguinte, no regresso ao aeroporto, enquanto as minhas colegas discutiam as condições do quarto ou a comida do restaurante, eu olhava para as ruas onde deambulavam centenas de crianças pobres à procura de comida ou lixo para vender. Um das pessoas ao meu lado, perante este cenário, fechou a cortina e é aí que senti o baque no coração. Eu não podia continuar a viver num mundo em que somos confrontados com as notícias de pobreza e tragédia e em que a nossa atitude é mudar de canal ou virar a página do jornal. Quando cheguei a casa, no Dubai, fui comprar um gelado que custava 22 dirham (€5) e comecei a fazer contas. Com aquele dinheiro eu conseguia comprar 22 quilos de arroz no Bangladesh! A diferença era abismal. Em maio tinha dez dias de férias planeadas na Nova Zelândia e decidi alterar os meus planos e gastar o meu tempo a fazer alguma coisa em Dhaka. Fui limpar o hospital, comprei produtos de higiene, lençóis, tudo o que podia para mudar as condições sanitárias do espaço. Nada foi planeado. Eu apenas sabia que não podia continuar a virar a página do jornal, a fechar a cortina do autocarro ou a mudar o canal de televisão.
Maria Cristina, a sua mãe adotiva, também a inspirou muito.
Ela costumava dizer: "quem alimenta seis dá comida a mais um". Quando tinha dois anos de idade, a minha mãe teve um problema de saúde e é esta amiga da família que passou a cuidar de mim. Fui para Avanca, perto de Estarreja, no distrito de Aveiro, onde vivi com ela e os seus seis filhos. Ela acabou por sofrer um ataque cardíaco e faleceu quando eu tinha nove anos. Mas nunca esqueci a sua força e exemplo de vida. É por isso que, anos mais tarde, dei à minha fundação o nome de Maria Cristina.
E como é que uma portuguesa emigrada cria uma fundação mundialmente famosa?
Quando atingi a maioridade, fui para a Suíça trabalhar e daí para a Inglaterra. É aí que entro para a Emirates que procurava falantes em português. É com a companhia aérea que acabo por desbravar horizontes e conhecer melhor o mundo. Em 2005 acontece este episódio em Dhaka e a partir daí fui gerindo a minha vida da melhor maneira possível. Com o meu ordenado e com a ajuda de colegas, amigos, pilotos, entre outras pessoas, ia recolhendo roupas, comida, dinheiro para isto ou para aquilo. Até 2008 fui vivendo assim, sem uma gestão concreta. E é quando se dá a crise financeira em que sou forçada a pensar em alternativas. Tive que me concentrar e encontrar uma estratégia. Criar a fundação foi a forma de dar visibilidade ao meu projeto, porque assim teria algo para apresentar às pessoas. Durante algum tempo ainda ponderei recorrer a programas de televisão e a figuras públicas como a Oprah ou a Angelina Jolie. Mas é difícil chegar a este patamar. Depois, lembrei-me que no Dubai as empresas são obrigadas por lei a contribuir para causas sociais e muitas optam por ajudar pessoas que fazem trabalho humanitário através de provas desportivas que patrocinam. E foi aí que tudo começou. Ainda consegui manter a minha profissão, com o trabalho de voluntariado, as provas, tudo ao mesmo tempo. Só que era muita coisa. Comecei a entrar uma espiral de cansaço crónico. E em 2012 saí em definitivo da empresa.
Tem saudades?
Das regalias. Porém, não me consigo imaginar a viver de outra maneira. Tenho 101 famílias com 131 crianças que dependem de mim para co-merem, para terem um teto, irem à escola... há muita pressão sobre os meus ombros. Estou focalizada nesta tarefa que é muito importante. Ninguém imagina o trabalho que fiz nestes últimos 11 anos e há imenso para fazer a níveis que ninguém imagina. Por exemplo, quando comecei a querer contribuir, tinha muito a atitude de perguntar o que podia melhorar. Um menino disse-me que o seu sonho era ter um bilhete de identidade, porque, caso morresse, ninguém saberia quem ele era. Ele não desejava comida, apenas um pedaço de papel que dissesse quem ele era. Existem milhares de crianças sem registo no Bangladesh, que morrem e ninguém sabe quem são ou quem foram. É aviltante! Só nessa altura tratei de 750 certidões de nascimento que as entidades governamentais eram incapazes de processar e fui eu que paguei a funcionários para poderem tratar da papelada. Não há estatísticas. É pior que o terceiro mundo.
Deve ser frustrante deparar-se com este trabalho hercúleo.
É uma guerra para travar em diferentes frentes de batalha. Mesmo lá é difícil chegar às pessoas. Muitas olham-nos com desconfiança e é o próprio país que os maltrata. Como estas pessoas são de castas inferiores, perguntam-me porque me preocupo com elas? E mesmo os pais não conseguem ajudar porque os patrões preferem empregar crianças a quem pagam menos. É normal os adultos mandarem os mais novos para fábricas ou aterros de lixo para recolherem papel ou latas para reciclar. Há muitas barreiras culturais para vencer.
Planos para os próximos tempos?
Continuar a lutar pelo futuro destas pessoas que acolhi. Tentei atravessar o Canal da Mancha em agosto, mas as condições dificultaram. Já tenho marcada nova tentativa para setembro do pró-ximo ano. E estou à espera de avançar para uma nova prova desportiva no primeiro semestre de 2017 que irá, caso tenho sucesso, ficar registada no livro dos recordes do Guiness. Mas ainda está nos segredos dos deuses. É sempre um desafio encontrar algo que me motive e mantenha a fundação viva. Existem milhares de organizações não governamentais à procura de apoio e todas precisam de visibilidade. A minha meta é 2026 porque é nesse ano que a “minha menina” mais nova, com oito anos, atinge a maioridade e será livre de escolher o seu futuro. Este ano tivemos 12 crianças que conseguiram a sua independência. Em 2018 serão 22 e, no ano seguinte, outras 22 terão ferramentas para lutarem pela sua vida. Será assim até as 131 conseguirem o seu projeto pessoal. Terei 49 anos de idade na altura e espero que todas elas sejam adultos que possam passar a mensagem, cuidar dos seus e, nem que seja, acolher uma só criança. Espalhar uma rede de bondade e assistência. Porque eu sei que não estarei aqui toda a vida.
Saiba mais sobre a fundação Maria Cristina e contribua para a causa desta vilafranquense: www.mariacristinafoundation.org. E veja os instantâneos em vídeo e o resto da entrevista no síto da gira em revistagira.com
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